4 de abril de 2017

Eu quero ser Jean Reno



Fui mestrar Vampiro Réquiem esses dias. Nenhum personagem pronto, jogadores livres para serem o que quisessem. Sentindo-me generoso e benevolente, até cheguei a liberar a maioria das Bloodlines. Menos Sangiovanni. Sangiovanni nunca.
Na hora de criar os personagens havia dois novatos. Um deles já tinha se decidido por um Khaibit, ou Lasombra New Age como ele preferia chamar, mas o outro permanecia quieto. Folheava e folheava o resumo de Bloodlines que eu havia levado, sempre sisudo, sem relaxar o semblante. Soltava as folhas, lia por cima alguma coisa do livro básico… nada. O tempo passou, ele sempre nesse ritmo, enquanto os outros quatro preenchiam suas fichas com a maior gana, debatendo sobre os melhores méritos pra se comprar, quem possuiria um carro, quem teria um haven, se iriam partilhá-lo, etc.
O recruta calado. Percebendo a dúvida do pobre jogador, quis ajudá-lo:
– Por que você não faz um Arquiteto? Eles são uma das linhagens mais interessantes que existem. Tudo bem que não têm super-mega-disciplinas, mas pra interpretar são fantásticos.
– Não sei cara… É que… Eu tô com essa idéia há um tempão já e queria por em prática.
– Fica à vontade. Desde que seja algo razoável a gente pode discutir. O que você quer ser? Um Tzimisce? É isso?
– Não. É meio bizarro, mas…
– Cara, sem neura. Khyasid, Belial’s Brood, Scourger, VII? Vale qualquer coisa, menos Giovanni.
– Hehe, não, não é Giovanni. Eu quero ser Jean Reno.
Pausa dramática, por favor. Não sei os outros Narradores, porém aquilo foi inédito pra mim. Tive que usar todo meu Autocontrole (leia-se cara-de-pau) pra não rir na cara dele, ali mesmo. Jean Reno. Pra quem não conhece, Jean Reno é um ator famoso, dos bons. Fez filmes como “O Profissional”, com a Natalie Portman recém-saída das fraldas, “Ronin”, ao lado de um monte de estrelas, incluindo Don DeNiro, e “Rios Vermelhos”, não muito conhecido no Brasil, mas merecedor de igual destaque (vai ganhar transcrição em aventura dia 15. Adivinha quem será o autor?). Jean Reno é um daqueles atores de peso que inspiram respeito, da liga de Tom Selleck, Chuck Norris, Bruce Campbell, DeNiro e Pacino, caras que não rezam, demandam. Daí minha reação:
– Tudo bem, dá pra fazer tranqüilo. Deixe-me ver… Acho que, no caso dele… Depende do foco que você tem em mente. Se quiser o Jean machão e guerreiro que nem em Wasabi, um Gangrel seria uma boa. A linhagem Taifa, aliás, se encaixaria perfeitamente, até porque ele é marroquino. Se for mais carismático e magnético, como o detetive de “Rios Vermelhos” recomendo um Ventrue. Já o Jean de “O Profissional” estaria mais pra um Nosferatu ou um Mekhet. Um Mekhet beeem perturbado, na certa, que sofreu muitos abusos no passado ou coisa do tipo. Mas o que você preferiria?
– Eu quero ser Jean Reno, normal, que nem nos filmes.
Outra pausa dramática. Essa foi AINDA mais dramática, pois a mesa inteira encerrou abruptamente uma acalorada discussão sobre a vital importância de alguém no grupo gastar seus méritos em prol de um Gado (Herd) para todos e fuzilou o pobre jogador com seus olhares. Afinal, todos contavam com ele como porta-voz e escada da Coterie. Logo começaram as tiradas de sarro (“Me deixa adivinhar…Você joga GURPS, né?”), comentários sacanas (“Mas que tara perversa é essa que você tem com o Jean Reno?”) e muito mais, o suficiente, eu diria, para traumatizar qualquer novato e espantá-lo de volta para as selvas primitivas dos MMORPGs.
– Que tal um Ghoul?
– Não, eu quero ser um cara comum. Sem poderes nem nada do tipo. Cansei de ser mago, lobisomem e herói. Eu quero jogar nWoD justamente por ser humano ser interessante. E você vai matar todo mundo no fim mesmo, não vai?
-… Vou. (Ele era uma pessoa sábia. Ou ao menos já conhecia minha tradição de aumentar a letalidade de quase todas as sessões “one shots”, justamente pra explicar o fim da campanha E pra valorizar os sobreviventes)
– Então. Você libera uma porrada de linhagem, mas não me deixa ser um humano?
O bate-boca recomeçou. Todos tentando convencer o novato, tentando com os melhores “combos” que existiam, poderes dos mais apelões, oferecendo até mesmo pontos de mérito. E ele, irredutível.
– Chega. O Julius (Nome fictício) vai ser humano. E Jean Reno. Ponto.
– Mas e aí a gen-
– Olha o XP, Andreas…
– Não, não, tudo bem, deixa ele ser humano… Mas já aviso que vai ter que se virar. E quero ver você por todo mundo junto! Mas nunca!
Criamos o Julius Reno. Ficou bom. Muito bom. Ironicamente, coube perfeitamente e foi um dos poucos sobreviventes. E quando eu digo poucos, significa único. Lógico que os outros integrantes chiaram, me acusaram de manipular resultados, favoritismo, desviar fundos, etc. Paguei a Coca e eles pararam de reclamar.
A lógica do que narrei é lembrar a graça de se jogar com um humano. Na maioria das vezes eles morrem. São frágeis, falhos, burros e fracos. Não possuem habilidades excepcionais e, não interessa o que façam, por mais insignificante, menor ou despretensioso que seja, acabam irritando ou chamando atenção de entidades indesejáveis. Extremamente limitados, deixam a maior parte de suas ínfimas escoarem por entre seus dedos enquanto sufocam seus sonhos em atividades triviais e rotineiras. Quando esbarram com o sobrenatural, aliás, são automaticamente marcados pra morrer ou pior. Eles são patéticos, fracos e risíveis.
Porém, eles somos nós, e às vezes interpretá-los (nos), seja em um mundo rotineiro ou numa terra de gigantes, pode ser mais divertido e interessante do que o que um olhar superficial pode revelar. Na aventura mencionada, por exemplo, o personagem do Julius era um homem atormentado por seu passado, o qual ele tinha paradoxalmente bloqueado. Não havia a menor chance de redenção ou perdão: ele não conhecia a razão de sua insônia constante, nem da depressão que tentava curar. Simplesmente atravessava seus dias como um ex-policial europeu, que recebe, um belo dia, uma proposta irrecusável: eliminar três traficantes/assassinos curiosamente escorregadios por nada menos que 600.000£ a cabeça. Aceitou e, com a assistência da equipe que lhe havia sido designada (ao questionar o porquê de uma equipe de profissionais para matar três homens recebeu como resposta um mero sorriso. E começou a se preocupar), composta por dois outros agentes viajou para os EUA. Lá recebia informações de um italiano, seu contato e anfitrião. Depois de muita intriga e duas traições, conseguiu plantar e detonar uma bomba no andar do edifício no qual os alvos operavam. Por pouco (por um 8) sobreviveu.
Personagens humanos são muitas vezes desprezados, jogados de canto como se descartáveis inúteis. Claro, os seres sobrenaturais cujos papéis tomamos por diversas vezes servem como metáfora para certos aspectos e facetas de nós e nossas vidas, mas é diferente. Muitos desconhecem e/ou ignoram o potencial de uma pessoa comum no jogo, tanto em termos de interpretação quanto de estratégia, mas lembrem que eles existem além do prelúdio. Cada vítima, cada Personagem do Narrador, cada vendedor é um Personagem de Jogador em potencial, com suas próprias história e feições. Logicamente, ser um corretor de seguros em cuja vida nada de empolgante acontece não soa muito promissor, mas é por isso que existe a liberdade de criação de personagens. Não os ignorem.
Quanto ao novato… Viajou. Ainda joga, só que agora na casa de amigos/vizinhos, no subúrbio Iowa onde reside. Como esperado, ele diz que lá as coisas não variam muito: gente comum ainda é ignorada e limitada ao papel de figurante em crônicas, a não ser nas raras ocasiões em que o sistema é Call of Cthulhu.
Mas ele ainda é Jean Reno.

Por Klaus Ribeiro
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O artigo “Eu quero ser Jean Reno” foi publicado originalmente pela Rede RPG em 18 de maio de 2008.

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