Em outubro de 2001, a jovem Aline Silveira Soares saiu de Guarapari,
no interior do Espírito Santo para a cidade de Ouro Preto, em Minas
Gerais. Com apenas a roupa do corpo e alguns trocados no bolso, seu
objetivo não era visitar as esculturas de Aleijadinho ou passear pela
arquitetura colonial considerada pela UNESCO como um dos patrimônios da
humanidade. Além de ser o mais belo monumento ao ciclo do ouro colonial,
Ouro Preto também é uma cidade universitária, sede da Universidade
Federal de Ouro Preto e coalhada de repúblicas estudantis, muitas delas
com décadas de existência e tradições. Uma dessas tradições é a Festa Do
Doze, que em todo 12 de outubro reúne alunos e ex-alunos da UFOP para
beber e curtir nas repúblicas e ruas da cidade. Era para essa festa que
Aline seguia, acompanhada apenas de uma amiga, Liliane, e sua prima
Camila Dolabella.
8 anos depois, em 3 de julho de 2009, Camila Dolabella entrou na sala
do júri do Fórum de Ouro Preto para ser interrogada. Após ter amargado
quase um ano na prisão, em 2005, e ter visto dois habeas corpus serem
negados, Camila finalmente estava sendo julgada pela acusação de
homicídio qualificado. A vítima seria sua prima Aline, que segundo a
promotoria, teria sido assassinada por Camila, Edson Poloni Aguiar,
Cassiano Inácio Garcia e Maicon Fernandes, todos os moradores da
república Sonata, onde as jovens se hospedaram para a Festa. A causa do
crime seria um jogo de RPG, que Aline teria perdido, sendo punida com a
morte… mais especificamente uma morte ritual, de acordo com preceitos
satânicos.
O Caso de Ouro Preto está fadado a fazer parte dos anais do direito
no Brasil. Não só pela violência do assassinato: Aline Silveira foi
descoberta na manhã de 14 de outubro morta, nua, sobre um túmulo no
cemitério Nossa Senhora das Mercês, com 17 facadas no corpo. A causa da
morte seria engorjamento, uma facada fatal no pescoço. Mas o que se
destaca é a completa incompetência, ignorância, má fé e os abusos
perpetrados por aqueles que deveriam ser os fiadores da justiça no caso:
o Ministério Público e a polícia de Ouro Preto.
Desde o começo a marca da investigação em Ouro Preto foi a combinação
de inépcia e sensacionalismo. O caso caiu nas mãos do delegado Adauto
Corrêa, na época sendo investigado por atentado violento ao pudor e
coerção no curso de processo. Corrêa, este exemplar da probidade
administrativa, não demorou para arranjar suspeitos para o crime. Logo
arrolou como acusados em seu inquérito a prima de Aline e três jovens
estudantes da república onde ela tinha ficado temporariamente hospedada.
Em uma inovação do procedimento policial normal, o principal elemento
incriminatório apontado pelo delegado não era a arma do crime, mas sim
livros e postêres encontrados na república Sonata. Incluindo aí livros
de RPG.
O RPG, ou role-playing game, foi inventado em 1974, nos Estados
Unidos. Uma evolução dos então populares jogos de estratégia de
tabuleiro, o RPG basicamente consiste de um grupo de jogadores que,
trabalhando em conjunto e usando regras de jogo pré-definidas, tenta
superar desafios propostos por um Mestre, responsável por narrar a
história e organizar cada sessão de jogo. Com sua popularização, o jogo
passou dar cada vez maior ênfase a interpretação, diminuindo o foco na
estratégia e privilegiando o desenvolvimento de personagens. Uma das
características principais do RPG é seu caráter cooperativo: os
jogadores e o Mestre devem trabalhar em conjunto para criar uma boa
história e garantir a diversão de todos. RPG não é competitivo, o que o
tornou um jogo ideal para ser aplicado em processos educacionais em todo
mundo. RPG também não é um jogo possível de se “perder” (uma vez que
não há competição) e tampouco possui laços com satanismo.
Nenhum desses fatos importou para o delegado Adauto Corrêa.
Desconhecendo os fundamentos do jogo de RPG, movido por intolerância
cega e, talvez pressionado para apresentar resultados o mais rápido e
espalhafotosamente possível (afinal de contas, até outro dia o principal
réu nas páginas policiais era ele próprio) Corrêa decidiu que Camila,
Edson, Cassiano e Maicon eram os responsáveis pelo crime. Corrêa estava
suficientemente seguro de sua conclusão para poder se dar ao luxo de
passar por cima e deixar de lado toda uma série de evidências,
investigações e exames que seriam necessários para propriamente
determinar o responsável pelo assassinato de Aline.
Corrêa, por exemplo, não levou em consideração o fato de que Aline
mal tinha tido contato com Edson, Maicon e Cassiano. Apesar de estar
hospedada na república deles, todos testemunhos concordavam que ela só
dormia por ali, passando a maior parte do tempo pela cidade ou em festas
em outra república, a Necrotério. Lá, testemunhas afirmaram que Aline
passou tempo, isso sim, aos beijos com Fabrício Gomes, na época
mal-afamado na cidade por um suposto envolvimento com o tráfico de
drogas. Mais ainda, Fabrício Gomes e Aline Silveira teriam sido vistos
em frente ao cemitério onde a jovem seria encontrada assassinada na
manhã seguinte. Quando Camila Dolabella alertou o delegado Adauto Corrêa
sobre o ocorrido, adicionando que Fabrício teria sido visto no dia
seguinte à morte de Aline vestindo uma camiseta manchada de sangue, a
resposta não foi promissora. Corrêa simplesmente anunciou que não queria
saber de mais detalhes, pois ele já sabia quem eram os culpados.
Aline Silveira Soares foi localizada nua, com os braços abertos e
pernas cruzadas, ao lado de roupas cuidadosamente arrumadas no chão,
entre elas uma blusa coberta de esperma. O corpo tinha sido
propositadamente arranjado dessa forma, fato evidenciado por uma trilha
de sangue no local. Analíses toxicológicas revelavam traços de maconha
no sangue da vítima. A investigação sob o comando de Adauto Corrêa não
encontrou digitais dos suspeitos no local ou na arma do crime, econtrada
próxima ao corpo. Também não comparou o esperma encontrado em Aline com
o dos acusados. Na verdade isso seria impossível, uma vez que os
policiais negligenciaram a coleta de material genético antes que ele
fosse contaminado ou se deteriorasse. Tampouco foram localizadas drogas
na posse dos acusados ou na república Sonata. Mas nada disso importava
ao delegado Adauto Corrêa. Ele podia se dar ao luxo de desprezar
evidências materiais e os testemunhos que contradiziam sua teoria.
Afinal de contas, seu faro investigativo encontrava provas contra os
quatro acusados em vários elementos considerados corriqueiros por um
olhar não treinado. O fato de que Maicon Cassiano chegara a república
Sonata naquela noite sem camisa, era evidência clara de que ele estaria
fantasiado como um personagem de RPG. E, logo, era assassino. Embora não
houvesse nada que indicasse que os acusados tinham passado pelo
cemitério das mercês naquela noite, objetos tinham sido encontrados no
local que poderiam ter servido num ritual. E se tinha havido ritual, os
acusados tinham participado, afinal, para o delegado, eram todos
obviamente satanistas. Outro elemento contundente contra os réus foi o
fato de que eles terem limpado a república durante o curso investigação.
Ignore-se que isso ocorreu quase uma semana após o crime, e que a
polícia não tinha dado nenhuma instrução para que nada fosse alterado no
local, apesar dos réus terem perguntado já nas primeiras horas do
desaparecimento de Aline se deveriam preservar tudo intocado na
república. Mas esse era justamente um exemplo do elemento mais
incriminador de todos: o interesse dos jovens em desvendar o assassinato
e ajudar a polícia só podia ser outra prova gritante de sua culpa. Como
o delegado Adauto Corrêa sabia, criminosos sempre tentam agir como
inocentes para despistar a polícia. Como o comportamento de Camila,
Edson, Maicon e Cassiano denunciava a mais completa inocência, eles só
poderiam ser culpados. Todos os quatro, apesar de que o laudo técnico
deixava claro que as facadas em Aline tinham sido feitas por uma única
pessoa.
A lógica tortuosa, irresponsável e perversa de Adauto Corrêa não
avançou sem problemas. Após concluída a investigação, que indiciava os
quatro jovens pelo assassinato, o caso chegou às mãos do promotor
Edvaldo Pereira Júnior, que reconheceu prontamente a impossibilidade de
dar seguimento aquele processo. Baseado em suposições, preconceitos e
tentativas descabidas de fazer os fatos se conformarem à teoria (das
mais mirabolantes), Pereira Júnior condicionou o seguimento do caso à
realização de 17 diligências, que providenciassem alguma prova cabal, ou
ao menos aceitável, sobre a culpa dos réus ou a identidade do assassino
de Aline. Adauto Corrêa não realizou nenhuma dessas diligências, dando o
caso por encerrado. Pereira Júnior tentou recorrer à Secretaria de
Segurança Pública para afastar o delegado de seu cargo. Enquanto isso
políticos oportunistas aproveitavam o caso para se promover, agitando a
opinião pública e alimentando a indignação com boas doses de
desinformação e mentiras. Um vereador chamado Bentinho Duarte passou uma
lei proibindo o RPG em Ouro Preto. O promotor Fernando Martins iniciou
processo contra as editoras Devir Livraria e Daemon tentando proibir a
publicação de livros citados na investigação do caso. A mídia
convencional se absteve de realizar qualquer trabalho jornalístico digno
do nome e, seguindo a linha Fordiana de que se o factoide é melhor que o
fato publica-se o factoide, deu ampla publicidade à teoria barroca de
Corrêa, ao mesmo tempo que desprezava as hipóteses contraditórias.
Apesar de se referirem aos réus como “suspeitos” ao invés de
“assassinos”, o esforço de “imparcialidade” dos jornalões nunca atacou
diretamente as óbvias irregularidades da investigação do caso nem
contestou o caráter delirante da acusação. Enquanto isso, os quatro réus
tentavam levar suas vidas, marcados pelo estigma de serem suspeitos de
homicídio. Edson foi ameaçado de morte e trancou a faculdade. Maicon e
Cassiano permanecerem em Ouro Preto, apesar da constante antagonização e
assédio por parte de moradores da cidade. Camila retornou para
Guarapari, onde passou a ser hostilizada pela família. Órfã de mãe, ela
contou apenas com o apoio do pai durante todo o processo.
Em 2004, após três anos em que o caso esteve parado, ele saiu das
mãos de Edvaldo Pereira Júnior e passou para a promotora Luíza Helena
Trócilo Fonseca. Diferente de Pereira Júnior, que tinha se recusado a
denunciar um processo tão eivado de inconsistências e sandices, Trócilo
da Fonseca decidiu dar continuidade ao caso. Em 2005, Camila Dolabella e
Edson Poloni foram presos. Quatro anos tinham se passado desde a morte
de Aline, e nenhum dos acusados tinha apresentado qualquer atitude
desabonadora até então. Edson saiu da cadeia após seis dias, sob efeito
de uma liminar, mas Camila passou a maior parte daquele ano na detenção.
Foi só quando o caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça que a pena
de prisão dos réus foi considerada descabida e lhes foi dado o direito
de aguardarem o julgamento me liberdade, apesar das alegações do
Ministério Público mineiro de que se tratavam de “contumazes jogadores
de RPG, em todas suas modalidades“. Note que, até então, continuavam
inexistentes qualquer evidência concreta de responsabilidade dos réus no
assassinato de Aline Silveira. Eles estavam sendo presos e acusados por
que tinham lido livros.
O caso permaneceu fora da mídia por alguns anos. Enquanto os réus
tocavam a vida, a promotoria construía o caso e se preparava para o
julgamento. Em 2006 a promotora Luíza Helena Trócilo Fonseca encontrou
tempo para mandar apreender todas as edições de número 09 da revista
Observatório Social, que denunciava na capa o uso de trabalho infantil
nas mineradoras de Ouro Preto. A promotora se preocupava que as fotos
expunham as pobres crianças, e afetavam negativamente a boa imagem da
região… Mas, enfim. Em 2008 foi decidido que o caso de Aline Silveira
seria levado à júri popular. Em 3 de julho de 2009, Camila Dolabella,
Edson Poloni Lobo de Aguiar, Cassiano Inácio Gracia e Maicon Fernandes
foram finalmente julgados pela acusação de homicídio qualificado. Na
falta de prova contundente contra eles, a acusação optou por lançar novo
ineditismo jurídico no direito brasileiro, ao sustentar que “o álibi
dos réus era fraco”. Ou seja, não cabia à promotoria provar que eles
tinham matado Aline Silveira. Eram os quatro estudantes que deveriam
mostrar que não tinham cometido assassinato, ou serem presos. Contra
eles pesavam diversas evidências “incriminadoras”: seus gostos musicais,
cinematográficos, o jeito como se vestiam e seus hobbies. Em 5 de julho
de 2009, o júri os declarou inocentes.
Não se tratou aqui apenas da óbvia falta de qualquer prova contra
eles. O decisão final dos sete jurados foi de que, efetivamente, os
quatro réus “não concorreram, de qualquer forma, para prática do crime”.
Os jovens que tinham passado quase uma década sendo coagidos,
assediados, ameaçados, difamados e perseguidos não eram os assassinos de
Aline Silveira Soares.
Teorias sobre o que realmente aconteceu não faltam, e já circulavam
desde os primeiros dias do caso. A mais verossímel é de que Aline teria
se envolvido com uma negociação de drogas, durante a Festa dos Doze, e,
sem dinheiro, teria concordado em manter relações sexuais como
pagamento. Não há indícios de violência sexual em seu corpo, o que
demonstra a consensualidade do ato, comprovado pela perícia necrológica.
Como a primeira facada em Aline foi em suas costas, tudo indica de que
ela foi atraiçoada pelo seu parceiro de negócios. Este permanece solto e
impune.
Os interesses escusos, a ignorância e o preconceito é que são os
verdadeiros criminosos no caso de Ouro Preto. Foram eles que permitiram
que por uma década quatro jovens inocentes fossem perseguidos
injustamente, sendo até mesmo privados de liberdade e forçados a fazer
inúmeros e pesados sacrifícios pessoais. Foram eles que deram ao
verdadeiro assassino de Aline Silveira, um homem brutal e cruel, um
passe livre para permanecer à solta. Em uma sanha cega e irresponsável
de achar um culpado a justiça de Ouro Preto falhou miseravelmente, e
duas vezes: não puniu o culpado e vitimou mais inocentes. Esse tipo de
atitude, ignorando procedimentos básicos do processo legal, atropelando
direitos civis e apelando para o ódio e a intolerância como elementos de
incriminação, não é compatível com o Estado de Direito. Eu não contei
essa história aqui hoje para inocentar Camila, Edson, Cassiano e Máicon.
Coube ao tribunal do júri fazer isso. Mas para tomar a atitude digna e
necessária de todo cidadão: exigir a imediata investigação e punição dos
responsáveis pelo caso do assassinato de Aline Silveira Soares. Sua
irresponsabilidade e malícia, sua truculência e abuso de poder não
podem, nem devem ser perdoadas, nem as sérias acusações de acobertamento
dos verdadeiros responsáveis devem ser relevadas. Isso não pode ser
permitido.
Os inocentes estão, enfim, livres. É mais que hora de punir os culpados.
Por Felipe de Amorim, em
Teoria da Conspiração.