Este conto passa-se nos momentos anteriores ao Golpe de Estado do Escorpião.
A escuridão sussurrou à noite e uma tempestade trovejou sobre as
montanhas ao norte, ameaçando jorrar através das planícies e cobrir a
todos. No palácio Bayushi, os corredores estavam imóveis e silenciosos e
a brisa fresca que precedeu a chuva moveu-se por passagens vazias e
telas shoji abertas, ignoradas pela noite. Nenhum movimento
mais agitava os corredores do poderoso palácio, nenhum cortesão
encontrava-se posicionado atrás das portas fechadas. Os guardas que
estavam a vigiar seus quartos tinham saído com eles, preparando-se para o
futuro que seu daimyo havia ordenado.
A escuridão na sala do trono era quase palpável, dissecando o som do
movimento e cobrindo tudo com uma espessa camada de antecipação. Um
homem repousava sobre um trono de obsidiana na parte superior do
estrado, a sua máscara pálida capturava os poucos fios de luz que
lutavam por abrir caminho através das nuvens. Suas mãos estavam vazias
agora, o pergaminho apertado encontrava-se caído no chão. Suas bordas
amassadas contavam uma história de grande idade e desgaste.
O Campeão do Escorpião não mais o via.
Ele não lembrava mais de suas palavras, insinuando escuridão e morte,
ou de suas profecias amargas de coisas que estavam por vir. Elas não
eram mais importantes. A pedra negra já estava colocada sobre a grande
fronteira do Império e o mundo esperava que Shoju fizesse sua primeira
jogada.
Seda deslizava pelo chão de madeira da câmara à medida que passos se
aproximavam. Suave e cuidadosa, com os olhos escuros baixos, Kachiko
curvou-se perante seu marido. “Meu senhor…”
Ele não disse nada, seus olhos estavam tomados pela escuridão que os rodeava.
“Eu trouxe Yojiro-san.” Ela continuou, imperturbável, e o jovem samurai atrás dela caiu de joelhos com a cabeça curvada em reverência ao seu Mestre.
“Shoju-sama”, o Magistrado Escorpião humildemente sussurrou,
com medo de quebrar o silêncio, mesmo com seus votos, “Eu sou seu servo
nisto, como sempre. Mas diga-me como morrer, e terei prazer em dar a
minha vida em benefício do clã.”
“Não” Shoju falou, e as palavras ecoaram alto demais. “Não é sua
morte que eu procuro.” Depois de uma longa pausa, Shoju virou o rosto
para longe da tempestade que se formava para olhar para o Escorpião
ajoelhado. “Eu desejo reivindicar sua vida.”
O pedido estranho mal tinha passado pelos lábios do daimyo antes de Yojiro concordar. “Você a tem.”
Shoju se levantou e lentamente tirou a espada do clã de seu obi.
“Esta espada foi mantida em segredo por gerações, escondida dos olhos
daqueles que querem nos fazer mal.” A mão direita de Shoju agarrou o
cabo com reverência, enquanto sua mão esquerda lutava para não se agitar
sob o peso da saya. “Eu a guardei perto de mim, para que sua força
pudesse me ajudar. Não o farei nunca mais.”
Yojiro levantou a cabeça para ver seu daimyo oferecendo
orgulhoso a espada, segurando-a com tanto cuidado como se estivesse
embalando uma criança. “Tome isso, Yojiro. É seu dever, agora.”
Honradas e preocupadas, as mãos de Yojiro levantaram-se para pegar a arma. “Meu senhor, eu…”
“Não recuse isso, pois não é um presente, Yojiro. É um dever. E não falo de honra, pois isso não lhe pertence.” O daimyo
virou-se, dando um passo em direção à janela, e o som de seus passos
desapareceu no rebentar do trovão acima do palácio. “Diga-me apenas que
ela nunca vai ser encontrada por nossos inimigos e eu sei que escolhi
bem.”
“Hai, meu sensei,” Yojiro gaguejou, segurando a antiga lâmina perto de si. “Será feito. Eu juro.”
“Vá, então. E não me deixe ver seu rosto novamente, neste mundo.”
Levantando-se, o Magistrado Escorpião curvou-se novamente, com os
olhos cintilando com preocupação e confusão. Ele olhou de lado apenas
uma vez para a Senhora da Casa. Kachiko olhou em silêncio para o marido,
oferecendo nenhum sinal de aconselhamento ou consolo. “Hai, Shoju-sama”, o magistrado disse novamente, e se foi.
As sombras agrupavam-se em seus pés enquanto ela se movia em direção a
ele, sua máscara com o laço agarrado ao seu rosto com a magia de uma
cortesã. Ela ficou ao seu lado quando ele abaixou a cabeça, assistindo
ao movimento dos relâmpagos em seus olhos escuros. Nenhuma palavra se
interpunha entre eles, apenas uma mágoa antiga. Ela tinha dado sua vida a
ele, mas nunca fora capaz de dar-lhe o seu coração.
Shoju levantou, seu corpo era flexível como um grande caçador felino
enquanto descia do estrado. Seus passos o levaram para atrás de Kachiko,
em direção à uma pequena mesa no outro extremo da sala. Lá, uma única
espada descansava no suporte de madeira, uma espada que havia chamado a
todos os senhores do Escorpião desde o tempo do antigo Iuchiban, o
Feiticeiro de Sangue. O nome da espada era Iyoku.
Ambição.
Sua mão parou acima da lâmina manchada quando ele olhou para seus
laços cuidadosamente arrumados. Uma agitação suave atrás dele denunciou
os movimentos de sua esposa. “Você não pode fazer isso”, ela murmurou.
“A espada é proibida.”
“Proibida…” Shoju olhou para o brilho do saya com desprezo, vendo sua
sombra refletida no clarão do relâmpago. “Nada é proibido para mim. Eu
sou o daimyo do Clã Escorpião. Eu sou a última esperança do
Império.” Com isso, sua mão fechou sobre o punho da espada, e o reflexo
desapareceu.
Shoju levantou Iyoku de seu estande, sentindo o tremor do despertar que percorreu o aço.
“Este curso de ação é muito imprudente, muito apressado, meu Senhor.
Há outras maneiras. Nossos espiões aprendem os segredos de Otosan Uchi
mesmo agora, descobrindo suas paredes escondidas e introduzindo-se em
suas passagens. Deixe-os cumprir o seu dever, meu Senhor Shoju.” Sua voz
era calma, mas seus olhos estavam abaixados para evitar que suas
emoções fossem exibidas. “Volte atrás. Este curso de ação é a jornada de
um tolo.”
“Não devíamos nos apressar, agora que a danação do Império se
aproxima?” Mesmo um sussurro, sua voz era o estalar de um chicote ao som
de uma chuva tranquila.
Uma pausa e Shoju pode sentir a lâmina chegar a sua mente, lendo seus
pensamentos. Ele podia sentir outra coisa, também, um sentimento de
emoção, de uma fome há muito esquecida.
“Meu Senhor, eu não aprovo…”
“Eu não preciso de sua aprovação,” Shoju respondeu asperamente. “Só de sua obediência.”
No silêncio que se seguiu, Kachiko baixou a cabeça. Apenas os relâmpagos e a chuva podiam ver a raiva em seus olhos.
Autoria: Ree Soesbee
Tradução: Fábio Firmino
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