4 de agosto de 2019

Usando enigmas e charadas em aventuras

Texto extraído do site Confraria de Arton.

“Tenho rios sem água,
florestas sem árvores,
montanhas sem pedras
cidades sem casas.
Quem sou?”
 
Nem sempre precisamos (ou podemos) simplesmente chutar uma porta ou uns traseiros para entrar em um local proibido ou restrito ou para conseguir uma boa informação. Muitas vezes essa passagem pode ser trabalhada um pouco mais, seja pelo mestre e seus NPCs, seja pelo personagem sendo desafiado. Conseguir ir adiante, sem ter que destruir, derrubar ou matar, pode ser muito mais vantajoso, divertido ou mesmo rentável (em pontos de experiência). Para tudo isso enigmas ou charadas são muito uteis.

O que é um enigma? Por definição enigma (charada usado como sinônimo) é algo ou alguma coisa de difícil compreensão ou definição, caracterizado por ser metafórico ou ambíguo. Esses enigmas podem ir desde perguntas sobre algo dito em uma frase ou texto, ou perguntas sobre algo físico como mover peças, até mesmo algo físico sem nenhuma informação que o grupo deverá adivinhar como fazer.

Os enigmas e charadas são elementos que possuem uma peculiaridade que os tornam únicos na mesa de RPG. Eles quebram a mecânica... eles rasgam as fichas em pedaços... eles riem da sua cara. Quando jogamos uma boa sessão de RPG da maioria dos sistemas tradicionais nos acostumamos a deixar a ficha quase que jogar por nós, embora gastemos um bom tempo e esforço interpretando nosso personagem. Preciso fazer algo? Jogue os dados. Preciso lembrar um nome? Jogue os dados. Quero tentar atingir alguém com um golpe? Jogue os dados. Tento interpretar um mapa? Jogue os dados.

Enigmas e charadas, se bem utilizados, fazem com que mesclemos nosso personagem com o que sabemos como jogadores. Eles nos obrigam a pensar, não mais por meio de nossa ficha, mas além dela, pela nossa própria cabeça de jogador. Com isso somos levados à uma nova sensação que nos desnuda frente à um desafio. Nem ficha, nem dados nos ajudarão. Estamos dependentes de inteligência, perspicácia, raciocínio e lógica. E isso é maravilhoso.
 
Os jogadores são verdadeiramente desafiados. Não adianta olhar para as fichas ou para o rosto do mestre que estampa um sorriso enigmático de satisfação. Cabe apenas ao jogador, quem sabe, se possível e permitido, com ajuda dos colegas de aventura, passar pela prova. Neste momento o futuro do grupo está dependendo de você... sem ficha... sem nada.

Dicas
 
Mas não basta simplesmente jogar os enigmas e charadas na frente dos jogadores e deixar eles se desesperarem. O mestre tem que ter claro quais usar, como usar, quando usar e em qual quantidade. Aqui vai algumas dicas uteis.

Nível do Enigma: muito cuidado com isto. Como tudo em RPG a intenção do mestre não pode ser simplesmente criar uma barreira intransponível. O fim deve ser sempre a diversão. Use (ou crie) enigmas possíveis. Se mais fácil ou mais difícil, isso é muito relativo, pois é quase impossível determinarmos se o jogadores (ou o grupo) conseguirão decifrá-lo. Muitas vezes somos surpreendidos com jogadores falhando em enigmas que nos parecem simples, mas temos que usar um pouco de bom senso (e muito cuidado) e tentar adequar o enigma ao grupo. Mas um ‘porém’ é importante aqui... o enigma deve desafiar o jogador e não o personagem. Não pense no enigma para o personagem que possui uma ficha com baixa ou alta inteligência (ou outro grau qualquer que mensure isso), pense no enigma para pessoa por detrás da ficha. Isso sim criará um interessante e divertido desafio.

Dicas: muitos enigmas já trazem em si as dicas para sua resolução, dicas estas percebidas pela lógica de quem o lê. Mas nada impede que o mestre distribua auxílios ou dicas ao longo da sessão ou campanha. Mas seja esperto e faça isso de forma sutil. Não jogue na cara dos jogadores (“isso é uma dica para algo importante no futuro...”). A resposta para um dado enigma é “árvore”? Faça com que eles estejam tentando achar essa resposta para abrir uma passagem secreta dentro de uma árvore, ou que tenham pego um pergaminho importante uma ou duas sessões atrás com o timbre de um árvore ou mesmo que tenham encontrado aquele anel mágico com aquela árvore talhada nele. Lembrem que dicas são possíveis, mas não são fundamentais.

Tema: use enigmas condizentes com o tema do jogo. Se estão jogando uma aventura de fantasia medieval não me venha com enigmas com termos e elementos modernos (pessoas famosas, equipamentos eletrônicos, etc). Use termos que sejam comuns ao universo do cenário. Não é por desafiarmos os jogadores que precisamos acabar com a imersão ao cenário. Isso mantém o jogador dentro do cenário, embora ele esteja sendo desafiado ao invés de sua ficha.

Quando usar: não comece a colocar um enigma à cada esquina que o grupo dobre. Assim como armadilhas em uma dungeon, enigmas possuem uma linha tênue entre o maravilhoso e o enfadonho. Embora não exista uma fórmula exata de quantos usar, como mestre você conhecer seu grupo de jogadores e deve ter alguma percepção da quantidade ideal para agradá-los. Enigmas, como qualquer elemento em uma aventura, devem ser pensados e pesados para serem colocados no lugar ideal, que os tornem significativos. Muito provavelmente não haverá um enigma para abrir o armário de armas da milícia da vila, mas poderá haver um para abrir o armário de pergaminhos e tomos na loja de magia ou na sala real.

Pesquise bem: com o advento da conectividade não há desculpe nem barreira de idioma para que o mestre não pesquise enigmas e charadas dos mais diferentes tipos e naturezas. Junte um considerável banco de dados com várias opções. Em algum momento elas poderão ser usadas. O importante saber é que enigmas, principalmente para grupos regulares de jogadores, têm vida útil de apenas um uso, assim você precisa de muitas e muitas.

E se não conseguirem resolver? Esta é uma pergunta que todo mestre se faz quando em usar enigmas. Isso é possível e provável mais vezes do que possamos imaginar. Como não temos como criar uma relação entre dificuldade e possibilidade de resolução frente à qualquer grupo, é impossível sabermos de antemão se os jogadores conseguirão elucidá-lo. Aqui o mestre deve ter jogo de cintura. Se o grupo se empolgar com a dificuldade leve o problema adiante com o enigma quase como uma quest e faça-os ir atrás da resolução. Nada muito longo – pesquisa na vila próxima, questionar o ancião do templo que conhece histórias antigas e esquecidas, vasculhar a biblioteca de algum lugar. Lógico que ninguém encontrará, rabiscado em um pergaminho, “resposta: árvore”. Mas é uma boa oportunidade para dar uma ou duas dicas ao grupo. Mas se o grupo não for muito afeito à este tipo de elemento, facilite as coisas. Essa facilidade pode ser por alguma dica que o mestre jogue à eles ou mesmo alguma artimanha do ladino... ou mesmo a solução da força bruta.
 
Reviravolta: nada melhor do que surpreender os jogadores. Faça-os achar a resposta de um enigma antes deles o encontrarem. Então, quando eles chegam ao momento de usá-lo... nada acontece! Enigmas podem ser mudados, principalmente se para acesso à lugares ou coisas. Nada impede que um enigma seja alterado. Este é um ótimo momento para o grupo dar dois passos para trás e retornar na história na tentativa de encontrar a resposta ou dicas ou simplesmente tentar decifrá-lo.
 
Usos

Cada lugar terá uma natureza de enigma própria. Veja abaixo algumas dicas de uso:

=> Guildas de magos ou ladrões são lugares ótimos para isso. Nestes ambientes os enigmas não serão incomuns, principalmente para aposentos particulares ou áreas com objetos preciosos. O que for relacionado com magos normalmente é representado por enigmas orais – jogos de palavras ou charadas. Uma placa ou inscrição na porta. Já com ladinos os enigmas tendem a ser físicos no sentido de movimentar peças ou objetos – mover trincos em uma determinada ordem ou mover peças em um sentido respondendo à uma pergunta. Mas não podemos imaginar magos ou ladrões gastando muito tempo para entrar em seu próprio quarto. Nesses dois casos devemos ter respostas rápidas, mas que mudarão de tempos em tempos. Já para o acesso à uma área restrita mas comum, o enigma tende a ser muito mais elaborado.

=> A guarda da cidade possui um capitão excêntrico – ele gosta de enigmas. Por isso, para dar acesso à determinadas zonas do quartel, ele periodicamente inventa enigmas para testar os guardas ou outras pessoas para ganharem acesso. Um ótimo momento para jogo de palavras.

=> A taverna pode ser muito mais do um local para beber e dormir. Imaginem o grupo sendo desafiado para uma disputa de enigmas por um velho e aposentado bardo local, onde o prêmio será o contrato para a aventura de suas vidas. Faça os jogadores se prepararem procurando eles mesmos algumas adivinhações. Estabeleça algumas regras e realmente faça o torneio mestre x jogadores. Estabeleça um clima de festa na taverna com torcidas, use algum método de contagem de tempo (um ampulheta será o máximo) e comece o torneio. Se os jogadores vencerem lhes conceda a honra do contrato. Se os jogadores empatarem com o velho bardo, ele reconhecerá seu valor e também os contratará. E se os jogadores perderem o bardo pode estabelecer uma nova disputa no dia seguinte (próxima sessão) ou os mandar em uma aventura menor para testar suas reais qualidades. Por tudo isso, eu sugiro que isso seja feito ao final de uma campanha ou sessão. Peça anteriormente (dias antes ou sessões antes) ao grupo para procurar seus enigmas, mas sem revelar o porquê. Faça a disputa ao final de uma jornada e mesmo que eles falhem, ficará o suspense para a próxima sessão onde vencendo ou falhando irão para a aventura estabelecida pelo velho bardo.

O uso de enigmas sempre foi algo muito apreciado por nobres e intelectuais. Um grupo de aventureiros pode ser desafiado por seu anfitrião em solucionar um enigma para receber um benefício ou informação.

Exemplos de enigmas
 
- Acima de uma porta selada há a inscrição “os olhos são o espelho da alma”. No ambiente há alguns espelhos. Um deles reflete alguns objetos fora de ordem. A porta só se abrirá se os objetos forem dispostos na posição correta segundo o reflexo. Para dificultar ainda mais, ela só se abrirá se alguém permanecer em frente ao espelho.

- Faça o grupo encontrar um poema ou texto. Cada primeira letra de cada palavra do texto cria a resposta para ser escrita em um pergaminho mágico que abrirá uma porta.
 
- Uma balança está à frente de um golen gigantesco que guarda uma porta. Ele está com a mão estendida. Ao lado da balança estão doze moedas com inscrições de 1 à 12. Quando os jogadores tentarem dar uma (ou várias) moeda ao golen ele dirá – “apenas uma é a correta... este é o último aviso”. Se os jogadores forem perspicazes eles perceberão que deve haver apenas uma moeda diferente, mais leve ou mais pesada... qual será?

- O grupo achou um diário de batalhas históricas. Ao longo do corredor, que leva à uma porta selada magicamente, há uma série de quadros com batalhas com suas legendas. As batalhas estão com um dos quadros fora da ordem cronológica. A porta só se abrirá quando os quadros forem colocados em ordem e para isso o grupo terá que consultar o diário.

- Cinco moedas dispostas sobre um tabuleiro. Seu arranjo correto libera a passagem para o interior do templo. Três moedas grandes e duas moedas pequenas, dispostas alternadamente (G-P-G-P-G) e encostadas umas nas outras em linha. As regras estão descritas ao lado do tabuleiro: Em cinco movimentos as moedas devem ser deslizadas, não recolhidas , duas moedas adjacentes (sempre de tipos diferentes) devem ser movidas a cada vez, pelo menos um do par movido deve tocar uma terceira moeda após o movimento, as moedas movidas não devem mudar sua posição – esquerda/direita - para orientação (por exemplo, G-P deve ser não virado para P-G). Ao final elas devem estar agrupadas com todas as grandes de um lado e todas as pequenas do outro.

- Um viajante chega a uma bifurcação na estrada que leva a duas aldeias. Numa aldeia as pessoas sempre dizem mentiras, e na outra aldeia as pessoas sempre dizem a verdade. O Viajante precisa realizar negócios na aldeia onde todos dizem a verdade. Há um homem de uma das duas aldeias em frente a bifurcação, mas não há nenhuma indicação de qual aldeia ele é. O viajante se aproxima do homem e faz uma pergunta. Depois de ouvir a resposta, ele sabe qual caminho seguir. O que o viajante perguntou?

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