Texto de Porakê Martins para a página "Brasil in the darkness".
“Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles pousaram.”
— Pero Vaz de Caminha. Carta de Achamento do Brasil.
Jurandir “Névoa-sob-as-Matas”, Sol Oculto dos Mokolé - mbembe de Ambalasokei, Pai da Ninhada do Pico da Neblina, relata aos filhotes:
Não deveria deixar de causar espanto o fato de que mesmo os povos latino-americanos da atualidade costumam estar muito mais familiarizados com a história e a cultura do “Velho Mundo”, ou da América do Norte, do que com a história de seu próprio povo, de seus ancestrais e das terras sobre as quais nascem, vivem e, quase sempre, parecem fadados a perecer.
A história das terras ao Sul do “Novo Mundo”, daquelas que os colonizadores europeus apelidaram de “Inferno Verde”, é uma história tão, ou ainda mais, grandiosa, trágica e conturbada do que a que acompanhou a humanidade do outro lado do Atlântico, porém, enquanto esta última costuma ser servida aos cidadãos latino-americanos enlatada com as cores vivas e atraentes de Hollywood, a primeira quase sempre é solenemente ignorada ou, pelo menos, parcialmente encoberta por um silêncio complacente ou por uma densa névoa de ignorância diligentemente cultivada sob camadas de preconceitos auto impostos.
Pois bem, chegou a hora de finalmente conhecer essa história pelo olhar daqueles que a viveram. Afinal, a nós foi confiada a tarefa de preservar as memórias. Começaremos pelas “Grandes Civilizações” pré-hispânicas, afinal, o paladar contemporâneo tende a valorizar muito mais as conquistas da vida nos grandes centros urbanos do que a pureza e a simplicidade da vida no coração das áreas selvagens.
Só depois, então, falaremos da beleza e dos perigos ocultos no interior da floresta e demais áreas reclamadas pela Demiurga, aquela reconhecida pelos Garou como Wyld, onde diversas nações humanas, exóticas criaturas nascidas de seus sonhos e nós, os Betê, convivemos por muito mais tempo do que coube dentro dos muros de qualquer cidade. Agora, iniciemos…
A chegada dos primeiros humanos
Os seres humanos não se originaram no continente americano, qualquer um deveria saber disso, eles sempre foram estrangeiros nessas terras em que Gaia prosperou por Eras sem ser incomodada pelas crianças da Desenhista (Weaver). Por muito tempo após sua chegada os primeiros humanos souberam viver em relativa harmonia com a natureza selvagem do continente que viria a ser conhecido como América.
Os primeiros humanos vinham de áreas conhecidas hoje como Ásia, alguns, como os ancestrais dos Garou, tanto hominídeos como lupinos, se estabeleceram na América do Norte, vindos por terras geladas, cruzando, em ondas sucessivas de diferentes etnias, o que os estudiosos humanos chamam de Estreito de Bering, uma relíquia de uma época em que Gaia decidiu, mais uma vez, vestir seu manto de neve e gelo. Nós não estávamos lá para ver com nossos próprios olhos, pois o Povo do Dragão nunca teve muito afinidade com o frio, ainda assim conhecemos a história, é nosso dever lembrar.
Entre esses pioneiros, que com o tempo migrariam mais e mais ao sul, nós também reclamamos parentes hominídeos, pois o sangue Mokolé, entre nossos parentes répteis, sempre esteve presente nessas terras. Alguns desses humanos pioneiros migraram lentamente em direção ao Sul e acabaram por dar origem, não só às tribos nativas da América do Norte, mas, também, às culturas nativas originais ao longo de todo o continente americano. Só muito mais tarde, nos dias que se seguiriam a chegada dos colonizadores europeus, os lobos, filhos da Serpente Uktena, chegariam a desbravar as terras ao sul até os recônditos da distante Patagônia.
Outros cruzaram o Oceano Pacífico e desembarcaram diretamente na América do Sul, pois o povo hoje conhecido como Polinésios, formado por homens e mulheres ousadas e inigualáveis na arte de singrar os oceanos. Eles traziam no sangue a herança do continente hoje chamado de Oceania, também o legado de nosso próprio povo, os Gumagan, e, mais forte do que qualquer outra nação humana, o legado de nossos aliados ancestrais, os Rokea. A nossos exóticos irmãos, vindos nesta leva migratória, devemos a existência da incomum varna Teyuwasu no braço sul-americano do Riacho Mokolé-mbembe, pois eles tomaram como parentes répteis os grandes lagartos Teiú da América do Sul, sabiamente evitando conflitos com os Mokolé locais, e a partir dos parentes humanos que trouxeram consigo, deram origem as tribos indígenas que viriam a ser conhecidas muito mais tarde como Guarani e Aimoré ao sul e sudeste do que hoje é o Brasil.
A terceira migração relevante, milhares de anos antes da invasão europeia, foi àquela liderada pela lendária Sol da Meia Noite, Mergulha-para-Trás, que liderou sua ninhada e seus parentes humanos e Bastet através do grande oceano para escapar da fúria sanguinária dos Garou, aqui eles encontraram uma terra livre dos filhos do Lobo e comemoraram conosco o reencontro dos dois afluentes do Riacho Mokolé-mbembe, separados há Eras pela deriva continental. Ainda assim, a ninhada de Mergulha-para-Trás não encontrou a paz, pois a guerra e as disputas territoriais entre as tribos humanas e Fera locais, assim como as maquinações da Decompositora, estavam muito longe de ser desconhecida nas “Terras Puras”.
Tollan, a primeira cidade das Américas
Kinich Ahau confronta Kulkucán na lendária cidade de Tollan.
Na mitologia das civilizações nativas, Tollan foi a primeira cidade das Américas, talvez tenha sido a primeira do Mundo, porque não? Governada por Kukulcán, a Serpente Emplumada, lendária líder Mokolé que legou aos povos nativos da América os conhecimentos da escrita, astronomia, arquitetura e agricultura que permitiram o florescer das grandes civilizações urbanas nativas da América. Kukulcán foi reverenciada por Olmecas, Toltecas e Maias, reconhecida pelos Astecas sob o nome de Quetzalcoatl e mesmo pelos distantes povos andinos no Sul, com o nome de Amaru.
Tollan não deve ser confundida com outras cidades míticas terrenas, nomeadas em sua homenagem, como Tula, Cholula ou Teotihuacan, todas elas inspiradas e erigidas em honra da lendária primeira cidade, mas que, apesar de toda a grandeza que possam ter vindo a representar, jamais passaram de sombras pálidas diante das maravilhas da verdadeira Tollan.
Segundo o mito, os habitantes de Tollan foram presenteados por Kukulcán, a emissária dos grandes espíritos, com a benção da civilização. Mas a Mnese permite a alguns Mokolé sul-americanos recordar a verdade. Kulkucán foi uma poderosíssima Coroada que liderou a construção de uma cidade onde os Mokolé, seus Parentes, os jaguares Olioiuqui e seus aliados Camazotz, conviviam em harmonia. Por gerações, Tollan foi como um verdadeiro paraíso na Terra.
Mas tudo que existe é digno de perecer. E um dia, o sombrio Kinich Ahau, Senhor do Mundo Subterrâneo de Xibalba, conhecido pelos astecas como Tezcatlipoca e pelos andinos como Supay, trouxe a intriga e a corrupção para o povo e enevoou os olhos dos líderes de Tollan, ponto fim a essa Era Mítica e levando Kukulcán, decepcionada, a decidir se afastar do mundo dos homens, mergulhando nas profundezas da Umbra à espera de dias menos tristes.
Entre os Mokolé latino-americanos costuma ser atribuída à Kukulcán a criação da própria Tribo Bastet Olioiuqui. Alega-se que esta tribo Bastet tenha surgido a partir de três Bagheera que compartilhavam o sangue Mokolé e que acompanharam a imigração liderada pela mítica Mergulha-para-Trás, cruzando o oceano entre Ambalasokei e Entoban.
Nas terras que viriam a ser conhecidas como o continente americano, os descendentes da Ninhada de Mergulha-para-Trás e seus parentes humanos e Bastet, foram forçados, pelos infindáveis conflitos por território e Parentes, a subir a foz do Grande Rio Amazonas até os Andes Peruanos, onde, com a ajuda de Camazotz locais, Kukulcán fundaria Tollan e inauguraria a própria ideia de civilização nas Américas, consagrando aos Olioiuqui a tarefa de defende-la, pela lei ou pelo Hakarr.
Esta versão da história não costuma ser muito popular entre os Balam, que reconhecem apenas o fato de que, há muito tempo, pela sua forma particular de medir o tempo, para fazer frente à destruição provocada pelos colonizadores europeus e frear o massacre de seus parentes, a Tribo Balam surgiu da fusão de duas outras tribos Bastet originais, os Olioiuqui e os Hovitl Qua, que antes disso rivalizavam entre si pelo direito de acasalar com as grandes onças-pintadas sul-americanas. Para os Balam da atualidade a origem das antigas linhagens perderam-se nas brumas do passado e é lá que devem permanecer, afinal, a guerra travada na atualidade e a sombra que se estende no horizonte futuro não lhes deixa muito tempo para desperdiçar com “tolas especulações”.
Por outro lado, o declínio de civilizações nativas do passado, muitas delas mesmo antes da chegada dos colonizadores europeus, ocasionadas por guerras, conflitos palacianos, desastres naturais, esgotamento de recursos e a mácula que levou algumas dessas culturas a se voltarem ao culto de entidades sombrias e impiedosas ligadas à Decompositora, o que faz com que boa parte dos Mokolé atuais recriminem a decisão de Kukulcán.
Nossa linhagem mnemônica, infelizmente, não detêm essa memória em particular, mas o fato das mais antigas representações do Senhor da Escuridão, Kinich Ahau, apresenta-lo, invariavelmente, sob a forma de um poderoso jaguar, parece corroborar as histórias de que a queda de Tollan deveu-se a uma traição dos Olioiuqui, o que não contribui em nada para tornar este um tema de conversas amigáveis entre Balans e Mokolés.
Na verdade, é dito que incursões mnemônicas de membros da linhagem mnemônica de Kukulcán nos dão conta de que Kinich Ahau traiu Tollan ao profanar antigos rituais de sangue Camazotz e roubar deles o segredo de viajar entre o Mundo dos Vivos e dos Mortos. Estes acontecimentos teriam justificado a cisma entre Camazotz e homens-jaguar que precedeu em séculos a derradeira queda dos filhos do Morcego. Confrontados pelo Jaguar Demoníaco e seus seguidores, os Camazotz sobreviventes, teriam feito o que melhor sabiam, fugiram, dessa vez para as profundezas da floresta, para raramente voltarem a ser vistos.
Especula-se que, ao retirar-se do mundo físico, Kukulcán tenha carregado para as profundezas da Umbra a própria Tollan, o que explicaria a ausência de registros arqueológicos diretos detectáveis por pesquisadores humanos, esta hipótese já levou alguns Mokolé, e até mesmo Balans e feiticeiros humanos incautos a se lançarem em buscas mnemônicas ou espirituais com objetivo de desvendar antigos segredos sobre a origem e o poder dessa civilização perdida. Até onde se sabe, nenhuma dessas incursões parecem ter sido bem-sucedidas.
Uma perspectiva Balam sobre Tollan
Mandaçaia, Bon Bhat Balam e Anfitrião do mais tradicional Recanto para Taghairm da Amazônia Ocidental, a Ilha das Onças, na foz da bacia amazônica, contradiz a versão Mokolé:
Percorri as profundezas da Umbra em busca dos segredos perdidos de nossos ancestrais Olioiuqui, guiado pelo próprio Uturunku através do ritual antigo ritual da Ayahuasca, e a verdade me foi revelada.
Amaru, aquela a quem chamam Kulkucán, não passou de um lagarto tirano, que exigia ser cultuada como Deusa por humanos e Killi. Supay, nosso honroso ancestral, ousou questionar suas pretensões sem limites e pagou um alto preço. Sim, Supay desvendou os segredos que o permitiram cruzar as fronteiras entre o Kay Pacha e o Uku Pacha, entre o mundo dos vivos e dos mortos. Quem pode condena-lo por isso? Não foi da própria Gaia que recebemos a missão para desvendar todos os segredos?
Quem são nossos detratores? Aqueles que se julgam dragões e igualmente desafiam a morte e o ciclo estendendo suas vidas além do que nos é natural, escondendo esse segredos de todos os seus “irmãos”? Hipócritas!
A Invasão dos Estrangeiros da Wyrm arrancou de nós muito de nossas mais antigas tradições, que os Mokolé, quase nada fizeram para nos restituir. O maniqueísmo que divide toda criação entre luz e sombra é mais uma mentira plantada no coração de nosso povo pelo colonizador. Os segredos conquistados por Supay fazem parte de uma passado glorioso que nos foi negado. Mas, pela bênção de Uturunku, trago de volta vislumbres da grandeza desse passado, sem as mentiras que contaminam aqueles que deveriam ser os “guardiões da memória”. Um dia fomos grandes, podemos ser grandes de novo!
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