Hélvia Guacho era uma cainita muito peculiar, embora fosse uma assassina experiente, membro renomada e especialmente impiedosa da Inquisição Sabá, o cinema exercia sobre ela um fascínio irresistível.
No olho do furacão de caos que o Sabá fazia emanar a partir da Cidade do México, vez ou outra, era possível usufruir de uma enganosa tranquilidade. Em noites como essa, quando não havia nenhuma demanda urgente por parte dos tediosos Monsenhores da “Espada de Caim” e ela tinha a sorte de se encontrar com tempo livre em sua amada Ciudad de Mexico, Hélvia podia se dar ao luxo de comparecer a última sessão em uma das salas dos Cines de la República, que ela frequentava há décadas, para apreciar o espetáculo ilusório de luzes e sombras que se descortinava diante de seus olhos fatigados por sua longa existência.
No passado as histórias eram contadas em volta de fogueiras os nos pátios exuberantes das acrópoles maias, movidas apenas pela imaginação. Mas agora, a magia da modernidade permitia elevar a um novo patamar a velha arte de contar histórias. Era só recostar-se nas poltronas surradas e deixar-se levar pela torrente de imagens e sons que invadiam seus olhos e ouvidos sedentos. Por alguns instantes era possível viver mil vidas, visitar terras distantes, que mesmo pés experientes como os dela jamais haviam pisado, e ver-se na pele de pessoas que jamais se imaginaria estar.
Para ela, aquela era uma experiência transcendental, quase religiosa. Afinal, Tezcatlipoca, o senhor da Luz e da Escuridão, Deus da Noite e da Magia, certamente se fazia presente naquele recinto de noite eterna, onde luzes e sombras encantavam incontáveis legiões de mortais– e até alguns imortais menos tolos que a maioria. –Poder vestir outras peles de maneira tão profunda havia se mostrado um exercício extremamente revelador e inadvertidamente útil.
Nessa noite, o tradicional letreiro na fachada do prédio havia atiçado sua curiosidade ao anunciar: La Mexicana. No cartaz, no hall da bilheteria, um jovem e belo casal trocava carícias e os nomes de estrelas hollywoodianas estavam estampados em letras garrafais. Parecia mais um romance “água com açúcar”, mas ela decidiu ariscar. Seria bom ser surpreendida, há muito tempo não conhecia essa sensação, talvez a tivesse esquecido.
O galã da vez lhe pareceu entregar uma atuação digna, como lhe era de costume, mas a “mocinha” a fez pensar tratar-se de um daqueles casos em que a aparência se impôs sobre o talento. Dessa vez, ela, de fato, havia sido surpreendida — de alguma maneira pelo menos — mas não pôde deixar de sentir-se indignada.
O filme, como denunciava o cartaz, não era sobre Jennifer Lopez, Penélope Cruz, Salma Hayek ou qualquer “chicana” do momento em Hollywood. Tampouco era sobre a bela atriz americana estampada no cartaz. Tratava-se de mais uma história sobre a paixão dos americanos por armas de fogo — dessa vez sob o disfarce de mais um romance “água com açúcar” — La Mexicana do título era um revólver. Afinal, como já cantavam os Beatles, a “felicidade é um revólver quente”. — Madre de Dios! — Não há nada que os ianques pareçam gostar mais. Deve ter algo a ver com a sintomática necessidade de demonstrar poder e virilidade. — Patético. — Pensou ela.
Como sempre, havia quem gostasse. Duas fileiras à frente, um grupo de adolescentes suspirava sempre que a direção pouco inspirada decidia enquadrar em close o galã. Duas cadeiras vazias ao lado, um casal fazia sexo sem parecer se importar muito com o mundo a sua volta. Pelo jeito, o rapaz ali se garantia mais do que o personagem em tela. Pelo menos alguém estava aproveitando o filme.
Ao longo da película contabilizava-se a morte de dois gays, do único negro da história e de vários mexicanos. “É o que fazemos na América”, justificava o personagem do galã. Aparentemente, homens brancos têm ereção ao disparar seus revólveres e medem sua potência pelos alvos que acertam. De repente, o “terceiro mundo”, já não parecia assim tão ruim, há lugares onde se vive pior. Por aqui, a moça ao lado pelo menos podia gozar sossegada, enquanto os homens na tela se distraiam com suas armas.
Ao deixar a sala de exibição ela ainda refletia sobre a forma como os americanos insistem em retratar o México e os “latinos”. Mas seus pensamentos são invadidos pelo cheiro de pipoca fresca e do chocolate na bombonière do hall de acesso às salas. — Será que aqueles mortais que deixavam seu refúgio encantado de luz e sombra para mergulhar na perigosa madrugada mexicana faziam ideia de que a pipoca, o chocolate e o guaraná em salas de cinema de todo o mundo eram legados deixados por grandes civilizações quase esquecidas nas brumas do passado do “Novo Mundo”? — Um legado tão rico e influente que incluía ainda coisas como o próprio milho, o feijão, a “batata inglesa” e o “porquinho da índia”. Um passado soterrado sob milhões de mortos e séculos de mentiras e dissimulação, como as águas do Texcoco que jazem sob a Cidade do México. — Se fechasse os olhos ela ainda podia vislumbrar o belo lago de águas salgadas sobre o qual se erguia, no passado, a imponente Tenochtitlán.
Caminhando reflexiva ela se depara com seu monumento favorito na cidade, La Fuente de la Diana Cazadora, uma donzela nua empunhando ameaçadoramente um arco apontado para as estrelas. A donzela já estava ali décadas antes da inauguração do tradicional Cines de la Republica e tudo fazia crer que seguiria em seu posto muito depois que os mortais se cansassem dos encantos do velho cinema. O monumento sempre foi outra fonte de fascínio para ela. Seu verdadeiro nome era La Flechadora de las Estrellas del Norte. A donzela já havia provocado protestos da hipócrita elite mortal da capital mexicana, afrontada por sua desinibida beleza e ousadia, mas com o passar de algumas décadas havia sido definitivamente incorporada à paisagem da cidade. Quis o gosto contemporâneo ver nela refletida uma divindade esquecida de um império decadente em um passado que repousa em terras distantes, do outro lado do Atlântico, mas suas formas, inspiradas em uma jovem mexicana, não deixam dúvidas sobre o que ela representava — Uma fonte de inspiração.
Por um instante, pela primeira vez, ela pensou ter visto La Flechadora largar a corda ausente de seu arco e disparar flechas invisíveis em direção aos céus do norte. Logo uma chuva leve e fresca de outono caiu sobre a cidade, como lágrimas insossas de incontáveis inimigos derrotados. Então ela contemplou as gotas que caiam preguiçosamente, dividindo-se em muitas outras ao encontrar o chão de asfalto e concreto, formando poças d’água onde lentamente outras gotas desenhavam círculos concêntricos refletindo as luzes pálidas da metrópole. Um sorriso surgiu no canto de seus lábios, como um raio em céu azul.– Aquele era o sinal que ela tanto esperou! — Era chegada a hora de deixar de ser Hélvia Guacho, a Inquisidora Sabá, e voltar a vestir o manto de Kalomte Kabel, o flagelo de Tezcatlipoca.
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Kabel sempre desprezou as hediondas paródias que representam os Auctoritas Ritae do Sabá, meras formas sem qualquer conteúdo. Mas reservava um desprezo especial por aquele que é conhecido como La Palla Grande, o Grande Baile Sabá, cuja data coincide com a do Halloween americano e do Día de los Muertos, uma deturpação profana do antigo culto a Ah Puch, o regente do submundo de Mictlán. Essa seria a última vez que Kabel se obrigaria a participar daquilo, embora, dessa vez, estivesse certa de que aproveitaria como nunca a ocasião.
Convenientemente caracterizada como La Catrina de los Toletes, visando deixar marcado, na memória de todos, sua presença. Ela participou do ritual como era esperado dela. Duplamente oculta, ao vestir sob a fantasia de La Catrina, seu disfarce como Hélvia Guacho. Exibiu-se para aqueles abaixo dela e demonstrou oportuna reverencia aos que se julgavam mais antigos e poderosos. Quando sua presença já havia sido convenientemente registrada, ainda antes que a Regente, Melinda Galbraith, pudesse fazer sua entrada triunfal. Kabel evocou seus dons de sangue para que não percebessem sua ausência, em seguida, utilizou sua velocidade para evadir do local.
Há tempos Kabel estava ciente da influência de Huitzilopochtli, o Baali, seu velho conhecido, sobre a Regente Sabá, mas ainda não julgava conveniente eliminá-la, sobretudo, usando seu disfarce como Inquisidora. Porém, essa noite, ela estava ali como Kalomte Kabel, o flagelo de Tezcatlipoca, adornada com as distinções de Ah Puch, a quem encomendou a alma amaldiçoada de Melinda. Ela desprezava todos no Sabá, mas odiava acima de tudo os Lasombra, que Melinda tentava emular ao ponto de se deixar confundir com um deles. Os Lasombra representavam para Kabel a essência dos invasores espanhóis que um dia pensaram ter erradicado para sempre sua estirpe. Logo eles recordariam que mesmo sombras devem temer a escuridão.
Em um piscar de olhos, ela penetrou nos aposentos da surpresa Regente, executando-a sumariamente ao arrancar seu coração negro com repetidos golpes de suas garras. Melinda ainda esboçou alguma reação, prevenida por sua assombrosa percepção, capaz de rivalizar, mas não superar, os dons furtivos de Kabel. A velocidade da guerreira Tlacique superava a da Regente, que ainda tentou, em vão, defender-se. Tão pouco a lendária resiliência e força sobrenatural de Melinda, a qual ela costumava usar para impressionar a seita em rituais públicos, foram suficientes para que a Regente pudesse resistir ao repentino e cirúrgico ataque da improvável e inesperada Matusalém Tlacique.
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Ela retornou à celebração tão rápida e repentinamente como havia partido, se alimentou e pacientemente esperou pela notícia da morte da Regente, mas a notícia tardaria em chegar. Não conseguiu evitar que um sorriso escapasse de seus lábios quando viu um impostor tomar o lugar de Melinda. Ela sabia que a farsa não poderia se manter indefinidamente e que logo o caos que havia plantado no seio do Sabá cresceria e traria frutos de destruição para os seus inimigos. Então, ela partiu.
Cavalgou o vento com a Benção de Huacán, da forma que Tezcatlipoca só havia revelado a suas crias. Antes do nascer do sol estava de volta a sua cidade natal, sua amada Calakmul, ou melhor, Ox Te’Tuun, como se dizia em seus tempos como uma mera e jovem mortal.
Ela deu uma boa olhada nas ruínas a sua volta, mais uma vez era como se pudesse ver a glória e imponência do passado. O mundo está em permanente mudança, nem os imortais duram para sempre. A má noticia é que tudo tem um fim, por melhor e mais glorioso que seja. A boa, é que tudo tem um fim, por pior e mais doloroso que pareça ser.
Nas matas próximas da ruína, em um local que ela havia guardado no fundo de sua memória, Kabel desenterrou seu chimalli e seu macuahuitl favoritos. Eles ainda estavam em perfeito estado, protegidos da ação do tempo por antigos feitiços nahuallotl. No chimalli, um pequeno escudo circular tradicional, a imagem de Kinich Ahau, sua face favorita de Tezcatlipoca; no macuahuitl, lâminas reluzentes de obsidiana negra, mas afiadas que o melhor aço que humanidade foi capaz de produzir, mesmo nas noites atuais. Ela desejava estar a caráter para assumir seu papel no tão esperado ressurgimento Tlacique. Na noite seguinte, o Arcebispo Tzimisce que havia reivindicado o nome de Xipe Totec, sentiria a carícia do verdadeiro deus esfolado.
Então, um arco alaranjado surgiu no horizonte prenunciando a chegada de um novo dia. Como um pequeno sacrifício em nome do Senhor da Luz e da Escuridão, Kabel tentou encarar o sol que ameaçava despontar no horizonte até que seus olhos queimassem como carvão em brasa e sua pele fumegasse com a carícia dos primeiros raios da alvorada. Ela resistiu sem a mínima expressão de dor e foi recompensada com um vislumbre de sua glória instantes antes de submergir fundindo-se ao solo sagrado de seus ancestrais.
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* Este conto foi escrito para a abertura do “Livro da Linhagem Tlacique”, de autoria de Porakê Martins e Alex Pina, sob licença do Storytellers Vault. Site: http://medium.com/brasil-in-the-darkness
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