Fui mestrar Vampiro Réquiem esses dias. Nenhum personagem pronto, jogadores
livres para serem o que quisessem. Sentindo-me generoso e benevolente,
até cheguei a liberar a maioria das Bloodlines. Menos Sangiovanni.
Sangiovanni nunca.
Na hora de criar os personagens havia dois novatos. Um deles já tinha
se decidido por um Khaibit, ou Lasombra New Age como ele preferia
chamar, mas o outro permanecia quieto. Folheava e folheava o resumo de
Bloodlines que eu havia levado, sempre sisudo, sem relaxar o semblante.
Soltava as folhas, lia por cima alguma coisa do livro básico… nada. O
tempo passou, ele sempre nesse ritmo, enquanto os outros quatro
preenchiam suas fichas com a maior gana, debatendo sobre os melhores
méritos pra se comprar, quem possuiria um carro, quem teria um haven, se
iriam partilhá-lo, etc.
O recruta calado. Percebendo a dúvida do pobre jogador, quis ajudá-lo:
– Por que você não faz um Arquiteto? Eles são uma das linhagens mais
interessantes que existem. Tudo bem que não têm super-mega-disciplinas,
mas pra interpretar são fantásticos.
– Não sei cara… É que… Eu tô com essa idéia há um tempão já e queria por em prática.
– Fica à vontade. Desde que seja algo razoável a gente pode discutir. O que você quer ser? Um Tzimisce? É isso?
– Não. É meio bizarro, mas…
– Cara, sem neura. Khyasid, Belial’s Brood, Scourger, VII? Vale qualquer coisa, menos Giovanni.
– Hehe, não, não é Giovanni. Eu quero ser Jean Reno.
Pausa dramática, por favor. Não sei os outros Narradores, porém
aquilo foi inédito pra mim. Tive que usar todo meu Autocontrole (leia-se
cara-de-pau) pra não rir na cara dele, ali mesmo. Jean Reno. Pra quem
não conhece, Jean Reno é um ator famoso, dos bons. Fez filmes como “O
Profissional”, com a Natalie Portman recém-saída das fraldas, “Ronin”,
ao lado de um monte de estrelas, incluindo Don DeNiro, e “Rios
Vermelhos”, não muito conhecido no Brasil, mas merecedor de igual
destaque (vai ganhar transcrição em aventura dia 15. Adivinha quem será o
autor?). Jean Reno é um daqueles atores de peso que inspiram respeito,
da liga de Tom Selleck, Chuck Norris, Bruce Campbell, DeNiro e Pacino,
caras que não rezam, demandam. Daí minha reação:
– Tudo bem, dá pra fazer tranqüilo. Deixe-me ver… Acho que, no caso
dele… Depende do foco que você tem em mente. Se quiser o Jean machão e
guerreiro que nem em Wasabi, um Gangrel seria uma boa. A linhagem Taifa,
aliás, se encaixaria perfeitamente, até porque ele é marroquino. Se for
mais carismático e magnético, como o detetive de “Rios Vermelhos”
recomendo um Ventrue. Já o Jean de “O Profissional” estaria mais pra um
Nosferatu ou um Mekhet. Um Mekhet beeem perturbado, na certa, que sofreu
muitos abusos no passado ou coisa do tipo. Mas o que você preferiria?
– Eu quero ser Jean Reno, normal, que nem nos filmes.
Outra pausa dramática. Essa foi AINDA mais dramática, pois a mesa
inteira encerrou abruptamente uma acalorada discussão sobre a vital
importância de alguém no grupo gastar seus méritos em prol de um Gado
(Herd) para todos e fuzilou o pobre jogador com seus olhares. Afinal,
todos contavam com ele como porta-voz e escada da Coterie. Logo
começaram as tiradas de sarro (“Me deixa adivinhar…Você joga GURPS,
né?”), comentários sacanas (“Mas que tara perversa é essa que você tem
com o Jean Reno?”) e muito mais, o suficiente, eu diria, para
traumatizar qualquer novato e espantá-lo de volta para as selvas
primitivas dos MMORPGs.
– Que tal um Ghoul?
– Não, eu quero ser um cara comum. Sem poderes nem nada do tipo. Cansei
de ser mago, lobisomem e herói. Eu quero jogar nWoD justamente por ser
humano ser interessante. E você vai matar todo mundo no fim mesmo, não
vai?
-… Vou. (Ele era uma pessoa sábia. Ou ao menos já conhecia minha
tradição de aumentar a letalidade de quase todas as sessões “one shots”,
justamente pra explicar o fim da campanha E pra valorizar os
sobreviventes)
– Então. Você libera uma porrada de linhagem, mas não me deixa ser um humano?
O bate-boca recomeçou. Todos tentando convencer o novato, tentando
com os melhores “combos” que existiam, poderes dos mais apelões,
oferecendo até mesmo pontos de mérito. E ele, irredutível.
– Chega. O Julius (Nome fictício) vai ser humano. E Jean Reno. Ponto.
– Mas e aí a gen-
– Olha o XP, Andreas…
– Não, não, tudo bem, deixa ele ser humano… Mas já aviso que vai ter que
se virar. E quero ver você por todo mundo junto! Mas nunca!
Criamos o Julius Reno. Ficou bom. Muito bom. Ironicamente, coube
perfeitamente e foi um dos poucos sobreviventes. E quando eu digo
poucos, significa único. Lógico que os outros integrantes chiaram, me
acusaram de manipular resultados, favoritismo, desviar fundos, etc.
Paguei a Coca e eles pararam de reclamar.
A lógica do que narrei é lembrar a graça de se jogar com um humano.
Na maioria das vezes eles morrem. São frágeis, falhos, burros e fracos.
Não possuem habilidades excepcionais e, não interessa o que façam, por
mais insignificante, menor ou despretensioso que seja, acabam irritando
ou chamando atenção de entidades indesejáveis. Extremamente limitados,
deixam a maior parte de suas ínfimas escoarem por entre seus dedos
enquanto sufocam seus sonhos em atividades triviais e rotineiras. Quando
esbarram com o sobrenatural, aliás, são automaticamente marcados pra
morrer ou pior. Eles são patéticos, fracos e risíveis.
Porém, eles somos nós, e às vezes interpretá-los (nos), seja em um
mundo rotineiro ou numa terra de gigantes, pode ser mais divertido e
interessante do que o que um olhar superficial pode revelar. Na aventura
mencionada, por exemplo, o personagem do Julius era um homem
atormentado por seu passado, o qual ele tinha paradoxalmente bloqueado.
Não havia a menor chance de redenção ou perdão: ele não conhecia a razão
de sua insônia constante, nem da depressão que tentava curar.
Simplesmente atravessava seus dias como um ex-policial europeu, que
recebe, um belo dia, uma proposta irrecusável: eliminar três
traficantes/assassinos curiosamente escorregadios por nada menos que
600.000£ a cabeça. Aceitou e, com a assistência da equipe que lhe havia
sido designada (ao questionar o porquê de uma equipe de profissionais
para matar três homens recebeu como resposta um mero sorriso. E começou a
se preocupar), composta por dois outros agentes viajou para os EUA. Lá
recebia informações de um italiano, seu contato e anfitrião. Depois de
muita intriga e duas traições, conseguiu plantar e detonar uma bomba no
andar do edifício no qual os alvos operavam. Por pouco (por um 8)
sobreviveu.
Personagens humanos são muitas vezes desprezados, jogados de canto
como se descartáveis inúteis. Claro, os seres sobrenaturais cujos papéis
tomamos por diversas vezes servem como metáfora para certos aspectos e
facetas de nós e nossas vidas, mas é diferente. Muitos desconhecem e/ou
ignoram o potencial de uma pessoa comum no jogo, tanto em termos de
interpretação quanto de estratégia, mas lembrem que eles existem além do
prelúdio. Cada vítima, cada Personagem do Narrador, cada vendedor é um
Personagem de Jogador em potencial, com suas próprias história e
feições. Logicamente, ser um corretor de seguros em cuja vida nada de
empolgante acontece não soa muito promissor, mas é por isso que existe a
liberdade de criação de personagens. Não os ignorem.
Quanto ao novato… Viajou. Ainda joga, só que agora na casa de
amigos/vizinhos, no subúrbio Iowa onde reside. Como esperado, ele diz
que lá as coisas não variam muito: gente comum ainda é ignorada e
limitada ao papel de figurante em crônicas, a não ser nas raras ocasiões
em que o sistema é Call of Cthulhu.
Mas ele ainda é Jean Reno.
Por Klaus Ribeiro
* * *
O artigo “Eu quero ser Jean Reno” foi publicado originalmente pela Rede RPG em 18 de maio de 2008.