Ao sul do Maule, segundo o folclore Inca, se estendia uma terra de
mistério e escuridão. Era um lugar onde as águas do Pacífico congelavam e
assumiam uma coloração azulada ou negra. Um lugar isolado em que os
povos nativos lutavam para extrair do ambiente hostil os mais básicos
recursos para garantir sua sobrevivência. Era o lugar também onde bruxos
viviam e de onde o mal primordial se espalhava pela Terra. Os incas
chamavam essa região amaldiçoada de Quicavi, "O Lugar das Gaivotas".
Hoje, o Lugar das Gaivotas, se localiza a cerca de 700 milhas ao sul da
capital do Chile, Santiago, e se prolonga por mais 1200 milhas na
direção da mítica Terra do Fogo (Tierra del Fuego),
descrita pelo geólogo Lucas Bridges como "os confins da Terra". Mesmo
nos dias atuais, a região permanece esparsamente habitada. Na porção
mais erma dessa região, encontra-se a Ilha de Chiloé: tomada pelo
barro acumulado das chuvas, coberta por uma densa floresta imaculada e
detentora de uma estória única. Visitada pela primeira vez por europeus
em 1567, Chiloé tem uma longa história marcada por pirataria e crime. No
século XIX, quando a maior parte das nações sul-americanas buscavam sua
liberdade, Chiloé permaneceu leal à Espanha. Apenas em 1885, ela foi
oficialmente incorporada a Nação do Chile. Chiloé foi palco de um dos
mais incomuns julgamentos de bruxaria de todos os tempos, possivelmente o
último julgamento de bruxaria significativo, em qualquer lugar do
mundo.
Quem eram os acusados, esse feiticeiros arrastados diante de uma corte por lançar magias em plena Era Industrial?
De acordo com o viajante
Bruce Chatwin que tropeçou nos
documentos sobre o estranho caso em meados de 1970, os acusados
pertenciam a uma "seita de bruxos do sexo masculino" que existia com o
propósito único de "ferir as outras pessoas". De acordo com seu próprio
testemunho, feito durante o julgamento em 1880, os alegados feiticeiros
eram acusados de assassinar seus inimigos, cobrar proteção, utilizar
venenos para matar inocentes e "sajaduras": um tipo de feitiço que
"produz profundas lacerações na carne das vítimas". Esses homens também
afirmavam ser parte de um grupo conhecido como
La Recta Provincia
- um grupo de estranhos nativos que se auto-proclamavam os verdadeiros
governantes de Chiloé, membros de uma elite aristocrática pré-colombiana
e segundo suas tradições, pré-Inca. Talvez eles fossem mais xamãs do
que feiticeiros.
Temidos pelos nativos, esses feiticeiros eram apelidados pelos espanhóis como La Brujeria,
um secto secreto operando no submundo. Tratados a principio como uma
lenda, os espanhóis enviaram observadores da Igreja ligados a Santa Inquisição
para investigar suas atividades em Chiloé. Segundo rumores três padres
enviados para a região morreram de forma misteriosa e um quarto fugiu
depois de se perder nas florestas e ser encontrado vagando sem rumo na
floresta - ferido e meio enlouquecido. Novas tentativas de descobrir
fatos sobre a Brujeria não encontraram apoio, pois os habitantes de
Chiloé tinham tanto medo dos bruxos que se negavam a falar a respeito
deles. Em 1773, um grupo de padres ameaçou prender habitantes de Chiloé
se estes não denunciassem os membros da Brujeria, uma revolta popular
eclodiu e uma Igreja foi parcialmente incendiada. Depois disso, as
investigações forma concluídas sem resultados.
O mais importante dos bruxos trazido diante do juízo em 1880 era um fazendeiro de Chiloé chamado
Mateo Coñuecar. Ele tinha então 70 anos de idade, e de acordo com
sua própria admissão, era membro da Brujeria há mais de três décadas.
No testemunho, Coñuecar afirmava que a sociedade era o verdadeiro poder
em Chiloé, contando com um grande número de membros, uma elaborada
hierarquia - onde despontavam "reis bruxos" e um quartel general,
localizado em uma caverna, cuja entrada secreta ficava ocultada pelo
lado de uma ravina. Essa caverna (que segundo a tradição Chilote era
iluminada por tochas ardendo com gordura humana) se localizava em algum
lugar da Costa de Quicavi e conforme as palavras juramentadas do bruxo,
era guardada por um par de monstros que protegiam os tesouros mais
valiosos da sociedade: um antigo livro de magia com encadernação de
couro e uma bacia que enchida com água refletia segredos.
O testemunho de Coñuecar, que pode ser encontrado entre os papéis do
pesquisador de história chilena Benjamin Vicuña McKenna incluem a
medonha narrativa de sua primeira visita ao covil da Brujeria:
Trinta anos atrás, quando José Mariman era o líder da seita, fui
avisado para ir até a caverna secreta onde a Brujeria se encontrava.
Eles haviam concordado que eu me juntasse a eles. Eu devia, no entanto,
providenciar carne como oferenda. Não podia ser a carne de uma presa
qualquer, eles deixaram claro que precisava ser carne humana. Eu fiz
como ordenado, levei para caverna os restos de um menino de rua que
havia sido assassinado com garrote na véspera. Encontrei um dos bruxos e
ele me acompanhou até o covil na ribanceira. Ao chegar lá, ele removeu
as roupas e começou a dançar de um lado para o outro gritando palavras
estranhas, que serviam como ritual para adentrar a caverna. Ele explicou
que isso era necessário para que o guardião não atacasse. Eu esperei
ele terminar e então vi uma coisa horrivelmente desfigurada parecida com
um homem surgir na boca da caverna, ele farejava o ar e grunhia como um
porco. Ao mirar seus olhos em mim, avançou na minha direção correndo de
quatro pelo chão e só fui salvo porque o feiticeiro que me acompanhava
gritou para que eu largasse o fardo contendo o corpo e me afastasse.
É possível, através dos registros da Recta Provincia, saber que a
horrível criatura encontrada por Coñuecar em 1850 era algo chamado Invunche ou
Imbunche. Essa monstruosidade é o Guardião da Caverna, um ser criado
pelos feiticeiros com o propósito de defender seu santuário de
invasores. Nu, deformado e feroz, o monstro é alimentado apenas com
carne humana, e passa a desejar esse tipo de oferenda. Segundo o
folclore da Brujeria, ele age como uma espécie de zelador e só permite a
entrada dos feiticeiros que sabem os rituais secretos que incluem
palavras de poder e certas danças. Qualquer um que tente entrar na
caverna sem a devida senha, é feito em pedaços pelo invunche.
O mais terrível a respeito dessa criatura assustadora é que ela é criada
através de um ritual dantesco a partir de um bebê sequestrado pelos
feiticeiros. Transformado em um monstro abominável, a criança perde
qualquer resquício de sua humanidade e passa a ser um servo dedicado da
irmandade. Segundo Chatwin "ao longo dos anos, [o invunche] aprende o
suficiente dos procedimentos do grupo a que serve e é capaz de falar com
horríveis gritos e sussurros guturais".
Não
parece sensato acreditar em uma estória absurda como essa, ainda mais
depois que os agentes do tribunal que julgaram Coñuecar procuraram sem
sucesso a entrada da caverna na primavera de 1880. Ainda assim, seja lá
que tipo de rituais a Reta Provincia realizava, uma coisa é certa: a
organização de fato existiu e muitos colonos reconheciam que seus
membros detinham poderes sobrenaturais.
Informações datando do início do século XIX mencionam que em Chiloé
vigorava um regime de medo e intimidação no qual um grupo demandava
dinheiro dos colonos e nativos, uma espécie de "tributo anual" pago para
"assegurar que eles não sofreriam acidentes durante a madrugada".
Existe a menção de que os habitantes da ilha que se negavam a pagar por
essa proteção, sofriam uma dura represália - lavouras eram destruídas e
animais morriam no pasto, vítimas de magia negra. Havia a crença de que
os membros da brujeria encantavam pedras com energia maligna e ao
atirá-las na plantação ou no pasto desencadeavam uma terrível maldição.
Os registros do julgamento de 1880-81 cita também que os bruxos
conheciam métodos de matar seus inimigos, usando venenos extraídos de
plantas e animais. Coñuecar disse que ao longo dos anos, inúmeros
fazendeiros foram mortos dessa maneira.
O feiticeiro também relatou várias outras façanhas que a brujeria
supostamente era capaz de realizar através de seus rituais secretos.
Eles podiam por exemplo voar, usando uma palavra de poder - arrealhue -
que fazia com que seus corpos flutuassem no ar. Para isso, o bruxo
precisava ter plena confiança em sua capacidade, uma vez que o ritual
demandava que ele se atirasse de uma ravina com pelo menos vinte metros
de altura. A ideia é que apenas um bruxo confiante seria capaz de
atingir o milagre de voar, os outros morreriam na queda.
Outro trecho importante do depoimento dizia respeito a criação do macuñ,
uma espécie de traje cerimonial usado pelos bruxos em todos seus
rituais. O macuñ era uma espécie de símbolo do feiticeiro e tinha de ser
criado no primeiro mês, após este ser aceito na irmandade. Para
confeccionar o traje, o bruxo precisava exumar o cadáver de um cristão
morto recentemente. A pele do cadáver era cuidadosamente esfolada numa
noite de lua cheia e os pedaços costurados com linha feita de cabelo
humano. O resultado era uma vestimenta semelhante a um avental de pele
rústica e curtida. A seguir uma fórmula secreta era preparada em um
caldeirão com a gordura extraída da barriga do morto. Essa mistura
servia para tingir o macuñ concedendo a ele uma propriedade bizarra:
brilhar com uma fosforescência na escuridão. Os bruxos andavam pela
floresta de Chiloé em procissão com seus aventais brilhando a caminho da
caverna e ninguém que visse aquele pérfido grupo em suas expedições
noturnas ousava ficar em seu caminho.
Para auxiliá-los em suas tarefas, os feiticeiros contavam com muitos
outros servos místicos criados por intermédio de suas magias. O chivato
era uma espécie de bode ou homem com cabeça de bode que podia fazer o
mesmo trabalho do invunche. Esse horror não era tão forte, mas seu
balido insistente quando algum invasor se aproximava da caverna
aterrorizava qualquer invasor e alertava os bruxos de uma presença
indesejável.
Coñuecar contou sob juramento que cada novo membro que se juntava a
sociedade recebia um pequeno lagarto que era colocado em uma gaiola
levada em uma bandana na cabeça. Segundo a tradição, quando dormia o
lagarto servia como uma espécie de protetor dos sonhos do bruxo, se
alimentando de pesadelos. A criatura também podia ser usada para
traduzir línguas perdidas e para abrir portas trancadas - embora a
testemunha não tenha dito exatamente como isso funcionava. Os ilhéus
também acreditavam que os bruxos utilizavam cavalos marinhos secos em um
ritual chamado
Caleuche - uma palavra que pode ser traduzida
como "mudar forma", no idioma local. Usando o caleuche, os bruxos podiam
respirar de baixo da água e se aventurar no fundo do mar. Segundo os
rumores, havia outro ritual que criava uma espécie de embarcação
fantasmagórica que permitia aos bruxos navegar sem que ninguém tomasse
conhecimento de suas atividades. Usando esse barco, eles podiam
transportar contrabando, uma atividade que tornava os membros da Recta
Provincia extremamente ricos. Os marinheiros que navegavam pelo litoral
de Chiloé falavam de barcos fantasma e consideravam um azar terrível
cruzar com um deles.
Quando os bruxos necessitavam de espiões ou mensageiros, eles também
empregavam seus rituais. A sociedade supostamente usava jovens
adolescentes para cumprir essas missões. As meninas eram despidas e
recebiam uma beberagem amarga feita com o extrato de várias raízes
nativas do Chiloé, entre elas o natri, uma planta extremamente
venenosa. Tudo era misturado e fervido com bile de lobo e sangue
menstrual. Essa poção mágica era tão potente que fazia quem a bebesse
vomitar os próprios intestinos em uma cabaça. Em seguida, um encanto era
proferido pela congregação e a menina sofria uma transformação
completa, tornando-se um pássaro negro. Segundo o documento, "o pássaro
produzia o som mais desagradável já ouvido por humanos". Quando a missão
dessas aves blasfemas se concluía, elas retornam para seu lugar de
origem, comiam suas entranhas de volta e se tornavam humanas novamente.
O poder de realizar magias desse tipo só era conferido aos feiticeiros
fiéis a sociedade. Segundo o testemunho de Coñuecar havia uma série de
cerimônias e rituais de iniciação para testar a fibra e a fidelidade dos
novos bruxos. A narrativa de seu primeiro encontro com o Invunche era
um teste no qual o feiticeiro que o acompanhava verificou que Coñuecar
não iria fugir diante da visão da criatura. Mas haviam muitos outros
rituais necessários para ser aceito na Brujeria.
Os iniciados que haviam sido batizados na cristandade eram obrigados a
se banhar na cachoeira do Rio Traiguén por quinze dias e noites. Isso
servia para limpar de seu corpo a água sagrada do batismo. Em seguida,
eles recebiam instruções para assassinar um parente próximo ou um amigo
íntimo, usando um garrote ou uma faca sem lâmina, o que provava que eles
não tinham mais emoções humanas ou qualquer vínculo afetivo. Chatwin
cita outros dois estranhos ritos de iniciação em suas transcrições: o
primeiro envolvia agarrar um crânio humano arremessado em um chapéu de
três pontas, enquanto no segundo o iniciado, devia ficar nu em um rio
até quase congelar enquanto outros membros se aproximavam para quase
afogá-lo na água.
Apenas quando todos os testes e ritos eram concluídos, o iniciado era
aceito na Brujeria e podia entrar na Caverna de Quicavi, ler as páginas
do Livro e aprender os segredos dos feiticeiros mais velhos - Los
Mayores que detinham a sabedoria da congregação. Uma severa hierarquia
existia na sociedade e os membros deveriam respeitar aqueles que os
antecederam jurando que nunca os trairiam ou roubariam. Também juravam
que não iriam consumir sal e que jamais iriam se casar. É mencionado que
o ritual de aceitação de um novo bruxo terminava com um opulento
banquete de boas vindas - que segundo alguns incluía pratos à base de
carne humana.
Mas se a Sociedade era tão poderosa e fechada, porque Mateo Coñucar
aceitou trair seus votos de fidelidade e expor os segredos da Brujeria?
Para entender os motivos, é preciso voltar ao período e entender o que
acontecia em Chiloé na época. Em 1880 havia um clima de transformação
social no país inteiro, as regiões que haviam conquistado sua
independência frente a Espanha estavam se desenvolvendo enquanto a Ilha
de Chiloé se isolava em sua devoção pela Coroa. A distância e a relativa
pouca importância da Ilha para os espanhóis não justificava o envio de
recursos para os colonos, enquanto as demais regiões autônomas não
desejavam negociar com os rebeldes. Além disso, o Chile havia se
envolvido em uma desgastante guerra contra seus vizinhos, Bolívia e
Paraguai e corria o risco de perder territórios para a Argentina - uma
nação rival de longa data. Alguns acreditam que o julgamento foi usado
para forçar os habitantes de Chiloé a se juntarem definitivamente a
República do Chile.
Além disso, havia outras questões dentro da própria Recta Provincia -
diferentes facções comandadas por bruxos que governavam cada região.
Alguns destes "reis feiticeiros" estavam satisfeitos com a mudança do
eixo de poder - sobretudo porque não toleravam a presença de padres
europeus em seu território. Cada líder da Brujeria era responsável pelo
seu próprio território havendo dessa forma diferentes interesses em
jogo.